5.5.09

Ave Poética

«Somos um povo de apaixonados. Enamoramo-nos dum autor, ou odiamos pessoalmente um outro, e a nossa actividade crítica cessa. Do primeiro fazemos um génio; do segundo, um animal. Esta simples coisa de gostar simultaneamente da obra de dois escritores, é impossível aqui. A paixão duma exclui a da outra. (...)
Sofre de grandes vícios a vida mental portuguesa (...). Não há pregação que nos dê fantasia, finura, leveza e, sobretudo, o dom de argamassar as fendas da construção com o betume duma inteligência que não cesse de se desdobrar. Mas um dos mais feios e lamentáveis é esse da parcialidade e do exclusivismo. Está bem, ou compreende-se, que num campo de futebol cada qual berre apenas pelo seu grupo. Embora em absoluto devêssemos aplaudir também as jogadas do adversário, tratando-se dum desafio é preciso incitar os nossos. Em arte, porém, não há combate nem adversários. Há o esforço de cada criador para trazer ao mundo a consciência e a beleza que pode, e ninguém deveria ignorar esse esforço e deixar de o louvar, se ele valesse a pena.

Lavro aqui mais uma vez o meu protesto contra toda esta filosofia do pessimismo que nos sufoca, e esta literatura do absurdo que nos liquida. Nenhum argumento nem nenhum sortilégio podem apagar no espírito do homem a luz de ilusão que ali bruxuleia. O erro grosseiro dos ironistas e dos derrotistas é não verem que eles próprios desmentem o visco e as profecias, porque, se lutam, é porque confiam. Sobretudo, parece-me uma limitação querer fotografar para a eternidade a face monstruosa dum momento. A Europa pode estar cansada, falida, contaminada por vícios incuráveis; mas a Europa não é o mundo, e ela própria tem ainda pedaços do corpo sem gangrena. Quando todos os analfabetos e famintos que lhe restam tiverem voz e pão, e falem de náusea, quando a herança da história, os bens do espírito, forem repartidos igualmente por todos os seus filhos, e o clamor colectivo seja de teimosa renúncia, então sim, soou a sua hora. Mas antes disso, não!
Um equívoco lamentável fez com que se tomassem as palavras literárias que morriam na capa das brochuras por sentimentos reais que agonizavam. E se é verdade que nos livros a tinta dos vocábulos descorou, dentro de cada um de nós o coração continuou a pulsar.
O homem é não só o instante em que se contempla num espelho, mas também a saudade doutras imagens passadas de que se recorda, e a certeza doutras imagens futuras que adivinha. E lá porque vê presentemente reflectida no ribeiro, onde mais uma vez faz de Narciso, não para se namorar, mas para se conhecer, uma face macerada, coberta dos suores da cobardia, nem por isso afoga na corrente os seus olhos. Embora triste e mortificado, continua a viver. E isto é sinal de confiança. Uma prova de que o mal tem remédio.
Se mais não houvesse a esperar da nossa condição, bastava-nos a má-consciência com que nos debatemos depois de cada perfídia. Pedimos ou não pedimos à lei que nos socorra, mesmo quando a queremos negar? Ou deixou algum tirano de lavar apressada e secretamente as mãos sujas do sangue inocente que verteu?
Há ainda uma poda que é necessário fazer: eliminar da actual angústia que nos atormenta o cinismo que a macula e o parasitismo que a explora. A verdadeira razão e o verdadeiro instinto mandam curar as feridas. Só os mendigos profissionais deitam sal nas chagas para as avivar.
Alienação humana! Quem é que autorizou meia dúzia de intelectuais impotentes a falar deste modo em nome da humanidade? A chapinhar na lama deles, e a proclamar que é na lama dos outros? Que o testemunho da nossa aventura na terra é um rosário de traições e de injustiças, ninguém o nega; que é preciso que se diga isso de todas as maneiras, é evidente; mas nem tudo o que fizemos foi mau, e estamos a começar ainda.
Não! Há-de haver uma salvação possível neste mar de naufrágios, e vão sendo horas de erguer a voz contra os derrotistas da jangada. Aterrados pelas suas fúnebres ladainhas, temo-nos esquecido de reparar nos acenos do horizonte, onde amanhece sempre uma ilha à nossa espera. Não a ilha solitária de Robinson, que seria o recomeçar inútil duma vida de egoísmo e de esterilidade, mas o húmus generoso dum novo mundo onde se possa semear a esperança.

Não tenho nada mais senão as asas.
Quando subo os degraus do firmamento,
É com elas que subo e que sustento
O peso bruto desta incarnação.
Asas de penas que me vão nascendo,
E que voam depois, desconhecendo
Que fúria azul as levantou do chão.

(...) não há palavra que se escreva sem esperança.»
Miguel Torga, Diário V

Pois, «(...) é sempre alegre o gesto criador, a palavra inicial.»
Dora Ferreira da Silva, Poemas em Fuga

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